O Programa Falou e Disse recebe Evandro Vieira
Hoje, dia 23 de setembro de 2025, durante o nosso programa “Falou e Disse” na TV RESISTÊNCIA com o apoio do competente EVANDRO VIEIRA OURIQUES estamos homenageando o nosso querido amigo MICHEL MISSE Sociólogo especialista em Violência Urbana. Michel é reconhecido como uma das pessoas mais credenciadas tanto no Brasil como no exterior para discutir as teses ligadas ao tema tomando por base pesquisas feitas desde a década de 70 na área do crime e da violência e que geraram livros como “Crimes e Violência no Brasil Contemporâneo”; “Malandros, Marginais e Vagabundos” sua tese de doutorada no IUPERJ. Isso sem esquecer Revistas como “Dilemas” da qual foi editor e abriu uma discussão sobre a Violência, tentando ir às suas causas e raízes. Daí, corroborando suas afirmativas não queremos trazer à baila uma discussão rasa ceifada pelo senso comum. Ou seja, tratar a violência como uma epidemia a ser controlada mediante uma vacina ou ainda que possa ser extirpada pelo extermínio dos sujeitos responsáveis à priori pelo estabelecimento indesejável dessa prática em nosso território. E por que falo em território? Porque as classes dirigentes de antemão já se apossaram da propriedade das cidades ou das melhores partes dela, reservando as menos “nobres”, força de expressão, melhor dizer as inabitáveis nos bolsões da pobreza. Mas, esses moradores de guetos, por vezes extrapolam suas reservas e nos invadem. A essa invasão denominamos violência.
A bem da verdade eu não pensava em escrever sobre Michel após sua morte, apesar de conhecê-lo desde a década de 90 quando fui morar em Niterói. Por essas coincidências da vida, nossos filhos estudavam na mesma Escola e se tornaram amigos e, uma das minhas colegas do Rio de nome Silvia, era muito ligada ao Michel e, tudo isso nos aproximou. Agora, após o Velório no IFICS semanas atrás, compareci ao ritual pós cremação: a de jogar suas cinzas no mar da Praia de Itaipu, bairro onde viveu vários anos. Lá, nesse dia conheci um dos seus amigos chamado EVANDRO VIEIRA OURIQUES acompanhado da Estelita sua esposa supersimpática. Foi um encontro daqueles que eu chamo de “almas” quando ocorre uma fina sintonia de entendimento imediato, onde as palavras saem não só de forma natural, mas com uma interação e assimilação recíproca e espontânea. Os temas da nossa conversa à quatro foram não só interessantes e variáveis, mas, o suficiente para nos deixar com gosto de quero mais e já no dia seguinte nos reencontramos na casa de Eliane para comemorar o aniversário do André Misse, o filho primogênito do Michel, e alí retomamos o papo. Resumo da história, jogamos conversa fora, trocamos zaps e percebi que o nosso “recém amigo de infância” poderia contribuir para enriquecer com o seu “know-how” de cultura e conhecimento a temática dos nossos programas de entrevista.
Sobre Michel quero deixar evidente que a sua importância não se traduz só no conhecimento e preparo e sim no seu significado no mundo como sujeito da história e referencial de vida com V maiúsculo da Vitória em sua passagem aqui, entre nós e que eu sinto como efêmera, rápida demais, até por ser insubstituível. E essa minha avaliação não se baseia num ponto de vista individual, sem ressonância no entorno onde vivia e, principalmente na intimidade da sua vida privada. Num velório é possível observar a reação dos amigos e dos seus familiares e o quanto essa ausência irá afetar a todos. E quando nesse espaço você conta com a presença de três ex-esposas incluindo filhos e netos, todos manifestando seus sentimentos de perda sem nenhuma reserva ou constrangimento, muito pelo contrário interagindo, se unindo na dor, percebemos a generosidade e maturidade emocional do grupo familiar. E aí nos lembramos que centenas ou até milhares de famílias onde aparentemente se vive em paz, é onde a violência impera e é praticada diariamente sob inúmeras formas, mas, sempre escamoteada sem vir à luz do dia ou sem deixar vestígios. Onde eu quero chegar vocês irão pensar? Sou testemunha ocular da história de Michel e pude ver o respeito mútuo entre todos e o entrosamento perfeito entre suas exs e atual viúva, sem abstrair os filhos. Espero que esse depoimento seja devidamente valorizado num filme documentário sobre MICHEL, com exemplo coerente de vida. Escrevo e me veem lágrimas aos olhos ao me lembrar de uma das cenas em que Fátima busca consolo nos braços de Eliane que usa ambos os lados para também abraçar Michel o filho da outra e onde o tempo parece parar para externar a nobreza da solidariedade e união. Na verdade, o sentido da posse foi exumado dando espaço ao sentimento irmanado. Essa foi apenas uma cena mais emotiva, mas, pude sentir claramente que ninguém era dona ou dono de Michel. Ele pertencia ao coletivo da humanidade e não era propriedade de A ou B ou por outra podia ser partilhado por todos e todas. Foram 3 encontros com o grupo familiar de Michel e em todos eles puderam perceber a integração como um processo normal de vida. Sem querer os exemplos negativos de outras famílias vieram à minha cabeça. A briga por herança, por afeto, por prestígio, por domínio. Irmandades apartadas, afastadas e o ódio à flor da pele. E aí me lembrava que o grande tema da vida de Michel era a violência e para resolver essa grande problemática a sociedade deveria reformular muitas contradições. E de repente prá somar me vem à memória uma das minhas entrevistas com ele sobre o tema da criminalidade em que fiz referência a outro “Michel”, o Foucault exatamente, e pergunto se ele o ajudou a pensar na questão do crime, do criminoso, da incriminação e do processo de criminalização. Ou seja, antes que haja crime, se já existia um criminoso em potencial. E no caso do Brasil onde buscaremos os sujeitos propensos potencialmente aos crimes? No Palácio do Planalto ou nos bolsões de miséria? Quando me referi ao Palácio do Planalto não poderia imaginar que exatamente nos nossos dias de hoje, estaríamos discutindo uma PEC da liberação incondicional aos crimes da cúpula ou cópula do Congresso.
Interdição total e isenção absoluta! Não podemos mais buscá-los para enquadrá-los nas Leis de Contravenção penal e encarcerá-los? Estou simplificando pois Foucault fala da Violência não em si, mas onde ela se produz, ou seja, na dinâmica dos jogos de poder que é cada vez mais difuso. Transita entre fronteiras tipo legal, ilegal, lícito, ilícito. Enfim, vamos aprofundar algumas questões com a ajuda do mestre Evandro Vieira Ouriques.
Para finalizar quero reproduzir um poema feito para o Michel por Jacqueline Muniz.
Michel Misse foi para Maracangalha, uma despedida.
Jacqueline Muniz
“Eu vou pra Maracangalha eu vou” cantávamos na saída e chegada do nosso bloco de carnaval, ano após ano, aqui do lado, na Cobal do Humaitá. Michel, além de fundador, era o puxador de samba e um mestre de cerimônia. Braços abertos para cada um que chegava para se somar à vontade de vida. Elegância na voz, delicadeza nos movimentos, cortesia no trato e alegria com arte, entre a música e as ciências sociais, como quem costura ritmos e ideias num mesmo tecido colorido. Cadência e sonoridade também com as palavras escritas e faladas, amor e delicadeza atravessando das trocas reflexivas nas aulas aos debates públicos, como ventania que sacode pensamentos e brisa que acaricia a alma. Arte e generosidade no diálogo com os pares e na militância lúcida e engajada, como quem oferece um copo d’água fresca no meio da marcha para refrescar as ideias.
A sociologia do Michel, pioneira, inovadora e parceira, era para todos, das ruas ao samba. Era lugar de encontro, acolhimento e luta — praça aberta onde cabiam batuques e teorias, abraços com argumentos. Com Michel, fizemos caravanas Brasil afora para levar o conhecimento em segurança pública para os policiais, gestores e ativistas. Estradas longas, noites atravessando o céu, paradas nos bares, malas carregando livros e estandartes, corações carregando causas. Juntos e misturados, era para valer, na luta política, dos manifestos às manifestações, da palavra de ordem à roda de conversa. Sobrava esperança com muita atitude, como sol que insiste, abre alas, mesmo em dias nublados.
Seus estudos sobre violência fizeram do rigor teórico, da integridade intelectual e da inovação, um exercício de encantamento e simplicidade — como transformar pedra em pão, conceito em canto. Sua sociologia apaixonada era para todos usarem, para ser distribuída. Era saber para mediar mundos, era sabor para transformá-los. Com que roupa íamos para a democracia que Michel nos convidou?
Assim residia a felicidade do colega de samba, do parceiro dos embates com ética na segurança pública, do companheiro nas pequenas e grandes lutas pela democratização da justiça e da segurança. Chama Michel, ele topa. Topa ser colega, amigo, parceiro. Topa ser travessia entre visões opostas, ponte de madeira firme sobre rios caudalosos. Topa ser tradução entre ações díspares, como quem afina instrumentos diferentes para tocar na mesma harmonia. Topa segurar na minha mão e na de muitos, para fazer uma corrente de reflexão, uma tropa para ação e um bloco de carnaval. Íamos nós todos entre marchinhas, livros e militância, cheios de emoção, como quem carrega estandarte bordado de muita vontade de futuro para todos.
Michel foi hoje para Maracangalha. Mas não foi só. Sigo aqui em seu cortejo vivo, com palavra, gesto e voz, com poesia e afeto na resistência por uma segurança pública democrática, para todos nós. Bata bumbo, chora cavaquinho, pausa na voz, silêncio na sociologia para o Michel passar. Confetes e serpentinas para o diplomata das ciências sociais seguir fazendo da nossa saudade um desejo ainda mais forte pelo amanhã!
