O Programa Falou e Disse recebe Ibis Silva Pereira.
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
Novembro é o mês voltado à ‘Consciência Negra” tendo o dia 20 como ápice das homenagens à luta do Líder Zumbi dos Palmares e de todo o povo que representa o repúdio à escravidão e ao racismo. Daí termos de saudar muitos e muitos nomes como Castro Alves, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, João Cândido, Luiz Gama, Luíza Mahin, Maria Tomásia Figueira Lima, André Rebouças, Adelina a Charuteira, Francisco José do Nascimento – “O Dragão do Mar”, Maria Firmina dos Reis- a 1ª escritora abolicionista, Machado de Assis, Milton Santos e modernamente Abdias do Nascimento, Djanila Ribeiro, Suely Carneiro e muitos, muitos outros.
Nesse ano de 2025 quero introduzir na cena do debate o Coronel IBIS SILVA PEREIRA, oficial da reserva da Polícia Militar do Estado do Rio que conheci recente em debate na ABI. Essa escolha é absolutamente aleatória e movida apenas por uma “intuição” ou percepção aguda da realidade. Lá mesmo, combinamos a entrevista com a certeza de que seria ele o parceiro ideal para trazer à discussão de forma isenta a formatação da sociedade brasileira a partir da importação “legalizada” da mão de obra escrava pelos europeus, no caso portugueses somando ainda os povos nativos e os imigrantes? Nesses séculos de cultura vamos chamar de “hibrida”, como foi possível harmonizar aspectos tão díspares envolvendo, raça, língua, religião, hábitos, crenças, tradições e conhecimentos nesse conjunto de valores tão antagônicos Como forjar a noção de povo brasileiro? De modo que temos de passar à limpo o quanto antes a nossa história. E volto a me referir ao Coronel por ele representar para mim a antítese de um modelo autoritário, feudal- colonial, imperialista, que tem como principal valor a posse da riqueza territorial ou dos seres humanos. Talvez muita gente pensa ser um paradoxo principalmente aqueles que nutrem vários tipos de preconceito inclusive sobre quem exerceu o papel de polícia sempre vista e julgada como truculenta. E dessas contradições imagino que possamos rever conceitos e julgamentos. Só agora fiquei sabendo que ele é doutor em História Política na UERJ.
Hoje, a tarefa é múltipla: além de lançar um olhar sobre o Brasil, podemos ir mais fundo, e saber com mais detalhes o que foi forjado no período anterior à nossa história trazendo à cena o Continente “diáspora” dessa tragédia a conhecida África. Chega de banalizar acontecimentos históricos de extrema importância com narrativas superficiais. É importante chegar à raiz do problema e mostrar suas trágicas consequências.
Walter Rodney um escritor guianense assassinado num atentado a bomba em junho de 1980 com 38 anos, pesquisou o Continente Africano nos últimos 500 anos de sua história e escreveu um livro, onde aprofunda a reflexão de como a “Europa subdesenvolveu a África”. Ao trabalhar esse conhecimento passamos a entender melhor todo o processo, que durou cerca de 400 anos, de subjugar extensos territórios tanto dos Continentes das Américas como da África. Qual o aparato de dominação os europeus desenvolveram, para conseguir num primeiro momento, desembarcar em vários pontos da África de Norte a Sul, Leste à oeste e estabelecer relações com seus diferentes povos com múltiplos objetivos não só o interesse comercial, mas, tudo aquilo que fizesse parte de sua cultura, observando sua organização interna, seus hábitos, contradições, diferenças e encontrando brechas para exercer um domínio sutil com ampla aceitação. Tanto assim, que esperaram um tempo de amadurecimento necessário e, nesse ínterim, alicerçando uma pseudo “amizade”. Só então deram início a um comércio “inovador” fora de qualquer parâmetro de ética: traficar vidas humanas. Vamos retroceder ao século XV quando a Europa e a África passaram a se relacionar através da internacionalização do comércio, mas, na verdade uma extensão ultramarina dos interesses europeus especialmente os países que se lançaram ao Mar do Norte e Mediterrâneo. Essas Nações detinham o comando da grande maioria das embarcações marítimas do mundo e administravam financeiramente o comércio entre os 4 Continentes, ou seja, o monopólio do conhecimento entre o sistema de troca em sua totalidade e tinham a seu favor a superioridade dos seus navios e canhões para obter o controle de todas as vias navegáveis do mundo. Claro que esse controle que começa em 1415 vai se ampliando cada vez mais com a compra e venda de mercadorias a partir dos portugueses, holandeses, ingleses, franceses e espanhóis direcionadas à África e que começa a ser enredado pela teia do comércio internacional. Os europeus vendiam mercadorias que produziam como linho holandês, ferro espanhol, estanho inglês, vinhos portugueses, conhaque francês, contas de vidro venezianos, etc e foram aos poucos capazes de descarregar no C.Africano até “quinquilharias” em desuso como uniformes usados, armas desatualizadas e qualquer coisa não vendável no seu próprio território. Havia interesse por produtos africanos como ouro, prata e marfim, mas, cuja exploração naquele momento não era muito viável. O poder europeu residia em seu sistema de produção, à época um pouco mais alto que da África uma vez que havia saído do feudalismo ao capitalismo e desenvolvido uma compreensão científica do universo, à produção de ferramentas e organização eficiente do trabalho. Isso não quer dizer que a inferioridade da África fosse absoluta como muitos historiadores tentam passar. Cito como exemplo a Nigéria que já havia desenvolvido a fundição de metais a um nível sofisticado de produção artística finíssimas. Rodney sugere que as suas peças de bronze eram mais relevantes que o canhão grosseiro. Mas esse preâmbulo é pouco para explicar como a África sucumbiu ao comércio escravista. É importante frisar mais uma vez, que essa subjugação foi um processo lento. Houve muita persuasão e pressão dos comerciantes europeus para que isso começasse, tomo como exemplo os apelos ao Rei do BENIN para que concordasse em vender prisioneiros de guerra africanos do sexo masculino. Na verdade, a Europa começou a se tornar o Centro de um Sistema que colocou o comércio escravista em marcha. A partir dessa lógica muitas estratégias foram colocadas em prática pelos mercadores europeus. Aos poucos Invadiram o Continente e, com astúcia e manha cooptavam tribos mais fortes, e que já mantinham a posse de prisioneiros dominados através das lutas locais. Propunham então levá-los em troca armas, álcool, tecidos e mercadorias, tudo capaz de fomentar e estimular suas rivalidades uma vez que percebiam o quão valioso era o tráfico de seres humanos. Dentro dessa lógica de atender à demanda crescente, as guerras eram provocadas, infladas ou prolongadas. Conflitos localizados se transformavam em “MÁQUINAS DE PRODUZIR CATIVOS”. Essa foi uma das formas mais perversas de infectar politicamente as sociedades africanas, criando destruição e dependência interna premiando os novos aliados ou aqueles que chegaram ao final da contenda tendo arrastado e aprisionado centenas de milhares de reféns homens em idade e condições físicas ideais para realizar um trabalho escravo bem longe dali. Um trabalho bruto e contínuo sem hora para começar ou acabar, sem nenhum tipo de remuneração, com alimentação suficiente apenas para aguentar o tranco, espaço de repouso rudimentar tipo estrebaria animal. Essa massa humana era embarcada em porões de navio em condições tão adversas que muitos morriam na longa travessia do Oceano Atlântico principalmente em direção às Américas, de onde foram arrastados, aprisionados, feitos reféns por invasores do continente. Muitos relatos descrevem gritos, corridas pela mata, verdadeiras caçadas humanas. Havia uma técnica de sequestro através de incursões rápidas ao amanhecer, incendiando aldeias e capturando quem fugia. Nesse caso mulheres e crianças eram levadas primeiro por serem mais fáceis de serem dominadas. Homens jovens eram amarrados pela nuca ou tornozelo, às vezes com forquilhas de madeira para impedir a reação. Os mercadores aos poucos passaram a aprimorar o aprisionamento dos seres como verdadeiros caçadores de animais. Tinham esconderijos próximos aos rios ou fontes de água, ou de trilhas de caça. E alí rendiam as pessoas quando estavam mais distraídos ou envolvidos com os afazeres. Depois de capturados vinham as táticas de transporte até o litoral: amarravam os prisioneiros em grandes correntes coletivas – uma peça de ferro de dezenas de metros atravessava os pescoços ou tornozelos de dezenas deles. Se alguém tentasse fugir, arrastava ou estrangulava os outros. Nas costas da Guiné, Angola, Congo, os europeus (portugueses, holandeses, ingleses e franceses) mantinham fortaleza como a de Luanda e Benguela em Angola. Ali os cativos ficavam dias ou semanas em masmorras escuras. Esses locais eram calculados para quebrar resistências físicas e psicológicas antes do embarque. Havia outro ritual com os homens muito mais consistente. Depois do convés eram enviados ao porão onde havia a chamada engenharia da desumanização – sem luz, sem ar, sem espaço. Era uma indústria de captura, uma logística total de violência aperfeiçoada ao longo dos séculos XVII e XVIII e durante parte do século XIX.
Outra questão minimizada foi o reforço ao subdesenvolvimento da África pela perda sistemática através dos séculos de sua população e inclusive da faixa etária considerada a mais produtiva e criativa, ou seja, entre os 16 e 35 anos, e, principalmente masculina. Essa perda era agravada mais ainda pela falta dos homens e parte das mulheres em sua fase reprodutiva. Crianças e pessoas acima de 40 anos eram alijadas de modo geral. O comércio escravista operou para promover uma baixa densidade populacional e consequente prejuízo ao desenvolvimento tecnológico com o bloqueio direto removendo milhões de adolescentes e adultos jovens no auge em que a inventividade surge. E os que permaneceram em áreas duramente atingidas pela captura de mão de obra estavam preocupados com a sua liberdade e não com melhorias na produção. Portanto a escravidão impedia a população restante de se envolver com a agricultura e a indústria daí porque houve prejuízo em todas as atividades e, particularmente a de geração de alimentos provocando insuficiência alimentar e o flagelo da fome. Vejamos o impacto do tráfico escravagista na demografia africana. Pode ter atingido 30 a 40 milhões de pessoas ao longo de 4 séculos. Dessas 5,8 milhões chegaram ao Brasil. Ao analisar os números não podemos nos esquecer dos efeitos colaterais devastadores sobre a natalidade, mortalidade, guerras internas estimuladas pelos europeus para facilitar a captura ao lado da desestruturação social, política -econômica. Não vamos nos esquecer das perdas sofridas por morte não só no processo de captura como também no deslocamento até a costa, nos “entrepostos”, em revoltas reprimidas e na travessia do Atlântico, só aí estimado em mais de 1 milhão. Dados estatísticos demonstram uma quase estagnação do aumento populacional durante esse período algo inédito no Planeta que triplicou sua população. Não podemos nos esquecer que a maioria dos homens e das mulheres em fase ideal de reprodução foram, exatamente o alvo do exílio escravocrata. Como se não bastasse aos europeus transformarem a África em celeiro de mão de obra escravizada sob violenta captura. quando o tráfico de escravo já no final do século XIX se tornou obsoleto pela necessidade de mão de obra remunerada para a formação e ampliação de um mercado consumidor, as Nações europeias se reuniram para organizar o espólio chamado ÁFRICA.E vai daí que cada um ocupou o seu pedaço, passando a exercer o papel tardio de metrópole dos países africanos. De modo geral foram 50 anos de colonialismo com portugueses, franceses, ingleses, holandeses, belgas, espanhóis fazendo a festa. No dia 11 de novembro foi celebrado, por exemplo, os 50 anos da Independência de Angola da metrópole portuguesa. Acompanhei online uma entrevista com a nossa jornalista internacional Beatriz Bíssio na Academia de Letras do país e que futuramente será retransmitida. Para concluir o tráfego negreiro não apenas matou milhões. Ele interrompeu o futuro de um continente inteiro. Tirou da África séculos de crescimento, riqueza, conhecimento e vidas que jamais deixaram de existir. Ao longo de 400 anos a África não cresceu- sangrou. E o Atlântico funcionou como uma aveia aberta.
Niterói, 20 de novembro de 2025.
Helena Reis
Bibliografia consultada: Rodney Walter, “Como a Europa Subdesenvolveu a África- BOI TEMPO – Edição 2022.
