A ARTE DO SER SOBREVIVE ÀS DROGAS E A PANDEMIA

Quem é RONALDO TORQUATO? Um anônimo que morreu de Covid? Para milhões de pessoas seria apenas um número a mais na estatística dos atuais 300 000 mortos da tragédia brasileira em curso . Para mim entretanto, é muito, muito mais que isso. Choro sua morte em silêncio! Percorro minhas paredes à procura de seus quadros! Uma história de vida entrelaçada à minha, em momento muito específico e importante, haja visto que falei dele por mero acaso na tarde do dia 25 de março, véspera ou no próprio dia de sua morte, com meu cunhado Kalil Hezim, sobre fatos vividos há cerca de 3 décadas. É verdade que o papo era daqueles bem saudosista e à tona vieram vários episódios da época. Mas Ronaldo, não tenho dúvida, entrou no meio da prosa sem pedir licença! Pode entrar Torquato, meu artista preferido que se auto intitula “marginal” também conhecido como “o pintor das cidades” , ou “o pintor dos guardanapos de papel” ou das “toalhas de mesa”, o artista “expressionista”, “ fauvista”, e acrescento : plural, múltiplo, sincrético, anômalo. Impossível definí-lo através de uma Escola de Pintura . Você não pode ser prisioneiro de uma camisa de força e rotulado pelos críticos de arte. O que prefere então? Imagino que mesmo tendo se colocado à margem, e sem fazer concessões, sempre desejou ver seu talento reconhecido, mesmo porque, é disso que se trata! Seu apreço aos mestres como Van Gogh não deveria penalizá-lo com a mesma trajetória de só ser valorizado após a morte. “Exagero meu”, Ronaldo: “ mesmo que seus quadros não tenham atingido alta cotação de mercado você foi alçado ao panthéon dos grandes artistas ainda em vida, não só pela plebe, como eu mas, por muita gente importante, vide o Mário Margutti, crítico de arte da melhor qualidade , o Sérgio Mota profo de Comunicação da PUC, e um séquito de profissionais da área, além de centenas de jornalistas, intelectuais, cidadãos comuns e tanta gente que sabe apreciar sem nenhum snobismo o que seja realmente uma obra de arte e que sempre apoiou e valorizou seu trabalho.” “ E não vamos nos esquecer dos prêmios que recebeu em Bienais na Europa, onde sempre foi convidado a expor. Mas, como tanta gente sabe, o mercado de arte é muito similar ao mercado de capitais. É um Cassino que enriquece alguns em detrimento de outros, e claro, nunca os que merecem realmente. Mas fique tranquilo, seu dia vai chegar! E eu vou me sentir orgulhosa de ter sido sua amiga e ter dado um empurrãozinho na sua carreira de artista. Na próxima semana irei ao Lamas onde nos conhecemos, só para falar de você. Vou ver se levo meu filho Flávio que mora em frente para que ele repita a sua frase lapidar no estilo bem Torquatiano” : “Garotos, lembrem-se que a vida não é um saquinho de pipocas”. Enfim, sei que os leitores dessa crônica gostariam de saber mais sobre a arte do artista e eu fico falando do “ser” Torquato e ainda mandando mensagens para o além. Peço perdão mas, ainda estou sob o impacto de sua morte e refazendo o caminho de volta naquele início da década de 90, quando eu frequentava o Lamas, um dos Bares mais antigos e tradicionais do Rio de Janeiro. Era meu ponto de encontro na época. Na verdade um ponto de descanso depois de sair do fatigante trabalho no meu próprio Restaurante o Maria Maria e encontrar no Lamas os amigos e o paraíso relaxante. Torquato fazia parte das mesas e utensílios do Lamas . Isso não é força de expressão- sua figura carismática podia se apropriar dos espaços de conversa, sem nenhum tipo de rejeição. Ali mostrava sua arte, ora feita alguns minutos antes, ora desenhada ali mesmo, sob os olhos e atenção do público tendo como tela, guardanapos disponíveis ou quando muito a própria toalha de mesa. A cena repetida diuturnamente contribuía para dar ao Lamas aquele ar ou atmosfera especial – um local de artistas, jornalistas e pensadores etílicos da noite carioca. O pintor dos guardanapos ganhou originalidade e expressão até na Europa onde expos seus trabalhos. Sem Torquato trabalhando de mesa em mesa havia uma ausência lamentada por todos. Sabíamos que ele só aceitava beber um copo d´agua ou quem sabe, um refrigerante. Qualquer bebida com teor alcóolico jamais chegava aos seus lábios e boca, não mais sedentos, uma vez curados da compulsão mortal. O pintor fora alcóolatra por anos chegando à decadência, até se curar da dependência com a ajuda dos “alcóolatras anônimos” . Pintura e droga uma mistura explosiva para um adolescente de 15 anos que se apaixona perdidamente pela pintura, quando numa banca de jornais descobre Van Gogh, em meio a uma revista dos grandes mestres da pintura. Entra em êxtase ao examinar o detalhe do quadro da “ Sinuca” onde havia uma lâmpada realçada por uma “certa pincelada”. O inquietante da questão é como uma pincelada marcou de vez uma vida . Essa pincelada teve a força de um punhal forjando o nascimento do artista Torquato. Lírico ou não, essa é a verdade dos fatos. E o álcool talvez nos primórdios tenha sido uma espécie de combustível para lançar o inseguro jovem a uma ousadia sem limite , uma intensidade avassaladora mas que aos poucos foi se esvaindo com a perda da potência do querer. Quem sabe um tiro aleatório no meio da testa, endereçado a outrem, tenha sido o sinal de alerta ou da redenção para o desvio da trajetória suicida? Em seu rosto, sempre chamava atenção a grande cicatriz do tiro, desnudado sem pudor pelas entradas da calvície precoce .
Um dia, não mais que de repente, perguntei ao Torquato porque não evoluía para o trabalho em tela. Sua resposta rápida e objetiva me mostrou o imediatismo da sua vida. Cada noite deveria trabalhar e levar dinheiro para casa para atender suas necessidades básicas de viver ou seja, moradia, alimentação, transporte, etc. Fora disso nenhuma ilação. Na sua zona de desejo não havia lugar para sonhos impossíveis. Fantasias à parte era pão, pão, queijo, queijo. Insatisfeita com o peremptório não, alguns dias depois, voltei a insistir na ideia e, trazendo um elemento novo, propus que ele começasse a pintar uma série de telas que traduzissem o seu estilo e, em número suficiente para ser apresentado em conjunto numa exposição. – “Mas onde vou pintar se não tenho nem atelier”, foi sua pronta resposta. Surpresa, pensei num átimo e respondi. Pode pintar lá em casa, tenho uma varanda e podemos adaptá-la para isso. Resumindo a história, Torquato viu e aprovou o espaço que acabou sendo ampliado e utilizado como residência provisória enquanto durasse seu trabalho. Foi um momento sui gêneris na minha vida. Meio à distância percebia a fúria que se apossava do artista que só pensava no seu trabalho não querendo perder tempo nem para dormir. No início confesso que senti um misto de medo e apreensão. Será que havia levado um louco para minha casa? Pintava freneticamente falando sozinho todo o tempo, não sabia com quem dialogava, se com a tela, os pincéis ou as tintas. Era um embate que perturbava o meu sono no meio da noite. Uma das vezes que me esquivei, meio oculta, em alta madrugada para observar o que acontecia, e o vi como um insano, bramindo os pincéis como se fossem lanças, gesticulando e falando consigo mesmo. Trabalhou com sofreguidão e logo logo, as telas começaram a ganhar formas e relevo e a cidade que ele via lá de cima do terraço começou a ser transportada para as suas telas gerando vida e sentido. Comecei a ver traços da Pça José de Alencar cada vez com mais nitidez e, os arranha céus começaram a brotar de todos os lados. A temática que passou mais tarde a ser o seu carro chefe brotava com força, ali , embaixo dos meus olhos e do meu ver curioso querendo capturar o instante do artista. Mas, não só da urbis vivia Torquato. Depois vieram os figurativos, um deles que se tornou a paixão do meu filho, nessa época com 7 anos de idade, foi “O cidadão”, um cara comum vestido com um terno no estilo de uma farda, sem personalidade, onde o sujeito era um mero zero à esquerda no meio da multidão. Havia também figuras épicas como o Dom Quixote vestido à rigor montado à cavalo e acompanhado por seu fiel escudeiro – Sancho Pança. D.Quixote um personagem recorrente na galeria de personagens. Nessa coleção havia também os nús artísticos – Considero um trabalho primoroso o que tenho no meu próprio quarto: uma mulher nua sentada numa poltrona de azul real e com os cabelos em chama. O título sugestivo: “Mulher pegando fogo” ; E finalmente o artista contempla as flores cito um belíssimo quadro com um jarro onde jorram flores e cores em profusão. Os quadros mencionados fazem parte da minha coleção pessoal daí poder citá-los com detalhes.
Enquanto preparava seus quadros com frenesi , eu e Beth Araújo ficamos imaginando como organizar uma exposição e atrair o público para ver o conjunto da obra de Torquato. Beth era do meio teatral e propôs que fizéssemos uma performance ligada a temática da exposição . Também atraímos um fotógrafo que preparou uma exposição paralela e que versava sobre os quadros de Torquato, fazendo cortes ou chamando atenção para detalhes. Paralelamente começamos a procurar os críticos de arte que falassem do surgimento “oficial” do artista em cena. E o local ? Era esse o X do problema, pois achá-lo demandava tempo e o tempo se esgotava a cada dia com a falta de dinheiro que Ronaldo deixara de ganhar pintando guardanapos. Eu sentia que seu nervosismo e angústia aumentavam na mesma proporção. Como solução resolvemos transformar meu próprio apartamento com longos corredores na Galeria da Hora. Havia a facilidade da localização geográfica, quase em frente ao Lamas. E assim como reza a lenda essa história verídica aconteceu de verdade.
A exposição foi um sucesso de público muito embora não tenha sido de venda . Era compreensível e até um tanto esperado. Nenhum artista é valorizado da noite para o dia porque passou do guardanapo para as telas. Isso iria demandar um pouco mais de tempo e daí tivemos de ir abaixando o preço das telas para encontrar compradores e eu mesma , apaixonada pela sua pintura fiz uma oferta para alguns dos quadros da minha preferência . O tempo passou, me mudei de cidade e quando me encontrei por acaso na rua com Torquato, ele me perguntou pelas minhas telas . Estão na comigo, respondi, não vendi prá ninguém , só àquela do “Cidadão”, dei de presente para o meu filho Flávio. A segurança da sua resposta me deixou feliz : – “Guarde-os bem, no futuro serão valiosos! Ganhei recente um prêmio na Bienal de Veneza. Pode apostar que vou chegar lá.” Seus olhos tinham um brilho premonitório de um remoto sucesso. Quem viver verá!
Rio, 27 de março de 2021